segunda-feira, 16 de novembro de 2015

AO LEITOR (1ª Parte)


(Nota do Blog: Nesse prefácio ao leitor, Owen faz uso de diversas citações dos clássicos latinos e gregos. Onde foi possível, acrescentei a devida referência e as traduções. Em outras situações, retirei a citação do corpo do texto e a coloquei em notas de rodapé, para facilitar a leitura.)



Leitor,
Se pretendes ir adiante, peço-te que permaneças aqui um pouco. Se és, como muitos nesta era fingida, um admirador de sinal ou título, e vens aos livros como Catão ao teatro[i], para logo sair, tiveste teu entretenimento. Adeus!
Àquele que resolveu analisar seriamente o presente discurso, e realmente deseja satisfação da Palavra e da razão cristã acerca das grandes coisas aqui contidas, dirijo umas poucas palavras de introdução. Temos coisas diversas em vista, que não são de pouca importância, e estou persuadido de que não podes ignorá-las. Portanto, não te perturbarei com desnecessárias repetições delas.
Somente pedirei tua atenção para prefaciar um pouco do que está em vista, e do meu presente esforço, como resultado de algumas de minhas reflexões relacionadas a toda a questão, após mais de sete anos de séria investigação (baseadas, espero, na força de Cristo e guiadas pelo seu Espírito) acerca do propósito de Deus quanto a essas coisas, com sério estudo de tudo o que pude avaliar que a sutileza humana, tanto nos últimos dias quanto nos antigos, publicou em oposição à verdade. Isso é o que desejo, de acordo com a medida do dom recebido, aqui asseverar. Algumas coisas, portanto, quanto ao ponto principal em questão, desejo que o leitor observe.
Primeiro, a afirmação da redenção universal, ou resgate geral, não pode alcançar seu fim proposto sozinha. Se ela for aceita, a eleição pela livre graça, como a fonte de todas as posteriores dispensações e de todos os propósitos seletivos do Todo-Poderoso, que dependem de sua própria boa vontade e desejo, também deve ser removida do caminho. Portanto, os que no presente[ii] com boa vontade guardariam alguma intenção de afirmar a liberdade da livre graça eternamente distinta arrasam eles próprios completamente, com respeito a qualquer fruto ou desfecho útil, toda a construção imaginária da redenção geral, que antes tinham erigido. Alguns deles dizem que há um decreto da eleição “anterior à morte de Cristo” (como eles próprios absurdamente falam), ou ao decreto da morte de Cristo. Então entabulam uma dupla eleição[iii]: uma para tornar alguns filhos; a outra, para tornar o restante servos.
Porém, essa eleição de alguns para ser servos a Escritura chama de reprovação, e dela fala como uma consequência do ódio, ou propósito de rejeição (Rm 9:11-13) Ser um servo, em oposição a ser filho e ter a liberdade, é maldição tão elevada quanto se possa expressar (Gn 9:25). É essa a eleição da Escritura? Ademais, se Cristo morreu para trazer aqueles por quem morreu à adoção e herança de filhos, que bem possivelmente poderia redundar aos que foram predestinados de antemão apenas para serem servos?
Outros[iv] dizem que há um decreto condicional geral de redenção que é anterior à eleição, o qual afirmam ser o primeiro propósito seletivo relacionado aos homens e a depender inteiramente da boa vontade de Deus. Negam, contudo, que quaisquer outros possam participar da morte de Cristo ou dos frutos dela, quer na graça ou glória, salvo os que foram assim eleitos. Agora, cui bono[v]? A que propósito serviria o resgate geral, senão o de afirmar que o Deus Todo-poderoso derramaria o sangue precioso de seu querido Filho por inumeráveis almas com as quais não terá que compartilhar uma única gota, e, com respeito a elas, seria derramado em vão, ou, ainda mais, seria derramado por elas para que pudessem ser ainda mais profundamente condenadas?
Esta fonte, então, de livre graça, este fundamento da nova aliança, esta base de toda a dispensação do evangelho, este ventre fértil de todas as distintas misericórdias, o propósito de Deus de acordo com a eleição deve ser rejeitado, desprezado, blasfemado, para que a fantasia dos homens não apareça como “Truncus ficulnus, inutile lignum[vi] – uma linhagem inútil. E todos os pensamentos do Altíssimo, que distinguem homem de homem, devem ser feitos para ter “ocasião”, dizem alguns; para ser “causados”, dizem outros, pelos seus próprios esforços santos e espirituais. Gratum opus agricolis[vii], – um sacrifício saboroso ao Baal romano, uma orgia sagrada às crinas deploráveis e duradouras de São Pelágio[viii].
E aqui, em segundo lugar, o livre-arbítrio, amor et deliciae humani generis[ix], a querida deformação da natureza corrompida, a Palas[x] ou amada auto concepção das mentes obscurecidas, acha corações e braços abertos para seus abraços adúlteros. A sorte é lançada e é passado o Rubicão[xi][xii]. O livro-arbítrio, que se opõe à livre e distinta graça de Deus como o único adversário, promove-se a si mesmo, isto é, àquela habilidade nata em todos de abraçar uma porção de misericórdia exposta para todos, sob o nome de livre graça. “Tantane nos tenuit generis fiducia vestri?[xiii]
Essa é a graça livre universalista, que na frase da Escritura é a natureza amaldiçoada e corrompida. Nem poderia ser de outro modo. Uma redenção universal sem o livre arbítrio nada mais é senão pesarosa ficção[xiv]; o mérito da morte de Cristo sendo para eles como um unguento numa caixa, que não tem nem virtude nem poder para agir ou alcançar sua própria aplicação sobre os indivíduos, sendo apenas estabelecido no evangelho para a vista de todos, para que, os que quiserem, por sua própria força, apoderar-se dele e aplicá-lo a si mesmos, sejam curados. Daí a prestigiada estima e alto valor que este antigo ídolo do livre-arbítrio tem alcançado nestes dias, sendo tão útil à doutrina da expiação geral que esta não pode viver um único dia sem ele.
Deveria passar por verdadeiro o que a Escritura afirma, isto é, que estamos, por natureza, “mortos em nossos delitos e pecados”, e não seria deixado ao resgate geral um retalho para ser incendiado pelo coração. Como a madeira da vinha, ele não produziria um alfinete para prender uma veste. Tudo isso encontrareis plenamente declarado neste tratado.
Mas aqui, apesar de todos os esforços e tentativas babilônicas dos velhos pelagianos com os últimos arminianos, sua cria mascarada, terem sido desrespeitosos e relaxados, devo mostrar-lhes maiores abominações que estas, e descobertas mais avançadas da idolatria dos corações dos homens.
Na busca por essa redenção universal, não poucos chegaram (ao que foram facilmente conduzidos) a negar a satisfação e mérito de Cristo. Veja P. H. que, não sendo capaz de desmanchar, ousadamente aventurou-se a cortar este nó górdio[xv], mas ao ponto de tornar ambos os fins da cadeia inúteis. À questão: “Cristo morreu por todas as pessoas ou não?” Responde: “Que ele nem morreu por todos nem por ninguém, a ponto de obter a vida e a salvação para eles.” [xvi] Deveria ser dada voz ao maldito socianismo na gloriosa descoberta da livre graça?
Agora peça por provas dessa afirmativa, como você poderia justamente esperar daqueles que se deleitam em ἀκίνητα κινεῖν (akineta kinein[xvii]) e logos tais fundamentos, que farão com que todos os justos no mundo se percam desse modo, serão derrubados: “Projicit ampullas et sesquipedalia verba”[xviii]; “ὑπέρογκα ματαιότητος” (hypéronka mataiótetos[xix]) grandes palavras de vaidade, expressões barulhentas, um barulho do vazio, a linguagem usual dos homens que não sabem o que falar, nem do que falam, é tudo o que é produzido.
Tais produtos desprezíveis têm nossas barulhentas montanhas! Pobres criaturas, cujas almas são mercadejadas pelos rostos pintados da novidade e vaidade, ainda que esses Joabes vos cumprimentem com os beijos da livre graça, não vedes a espada que têm em suas mãos[xx], as quais enfiam entre vossa quinta costela, no próprio coração da fé e de toda consolação cristã. Parece ser a mais profunda humilhação de nosso bendito Redentor em carregar o castigo de nossa paz e punição de nossas transgressões, sendo feito maldição e pecado, desertado sob a ira e poder da morte, buscando a redenção e a remissão de pecados através da efusão de seu sangue, oferecendo a si mesmo como sacrifício a Deus, para fazer reconciliação e adquirir uma expiação, sua busca dela reforçada com contínua intercessão no santo dos santos, com todos os benefícios de sua mediação, isto é, que apesar disso tudo ele de modo algum possa assegurar nem vida nem salvação ou remissão de pecados, mas apenas servir para declarar que não somos de fato o que sua Palavra afirma que nós somos, isto é, amaldiçoados, culpados, corrompidos, e apenas na verdade não lançados no inferno: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” Veja isso refutado no livro 3.
Agora, essa última asserção [de que não somos corrompidos e amaldiçoados], exaustivamente imaginada, abriu uma porta e deu admissão a todas estas pretensas realizações gloriosas [da alma humana] que metamorfosearam a pessoa e mediação de Cristo em uma imaginária e difundida bondade e amor, comunicados por um Criador a uma nova criação. Nem mesmo os dois princípios das fábulas familiares de Cerdão eram mais absurdos. Os números platônicos e os éons de Valentino[xxi], fluindo dos úteros grávidos da Pleroma, Aión Téleos, Bythós, Sigé, e o resto, apresentados como altas e gloriosas realizações da religião cristã, há cerca de 1500 anos, não eram menos inteligíveis. Nem aquela corrupção das Escrituras por aquele verme do Ponto chamado Marcião iguala o desprezo e escárnio lançados por estes impotentes impostores, que excluem de suas considerações suas descobertas sussurradas, e exaltam suas revelações acima de sua autoridade. Nem alguns se limitam a isso, mas[xxii] o próprio céu é aberto para tudo o mais. Da redenção universal, passando pela justificação universal, num pacto geral, eles chegaram[xxiii] à salvação universal. Dizem que nenhuma perda de direito seria possível para a herança assim adquirida.
Quare agite, o juvenes, tantarum in munere laudum,
Cingite fronde comas, et pocula porgite dextris,
Communemque vocate Deum, et date vina volentes.

Por isso mesmo, mancebos troianos, tomais também parte
No festival; a cabeça cobri, levantai vossas taças,
Vinho bebei com largueza e invocai pelo nome à deidade.[xxiv]

Marchai, brava juventude, no louvor da livre graça,
Cercai vossas comportas com baías; e colocai copos cheios
Em vossas destras mãos: Bebei livremente, e depois invocai
A esperança comum, o resgate geral.[xxv]




[i] Owen começa seu endereçamento ao leitor de um modo que nenhum escritor moderno — ávido por reconhecimento — o faria. A referência é a um dos famosos epigramas de Marco Valério Marcial, poeta satírico latino. Marcial criticou a presença do severo Catão, o Censor, no teatro, que inibia a plateia de se divertir com a licenciosidade das peças representadas, com o seguinte epigrama:
Nosses iocosae dulce cum sacrum Florae festosque lusus et licentiam uulgi, cur in theatrum, Cato seuere, uenisti? An ideo tantum ueneras, ut exires?
Se conhecias o culto grato à jocosa Flora, os divertidos gracejos e a licenciosidade do vulgo, porque vieste, Catão severo, ao teatro? Ou terás vindo só com o fito de sair?
Vê-se claramente que o uso de Marcial por Owen é um artifício puramente literário, sem qualquer espécie de julgamento moral sobre o contexto da passagem aludida. Aos que criticam o melindre extremo dos puritanos, basta pensar em um pastor usando um poema satírico de Gregório de Matos ou de Bocage para ornar uma sentença e eis aí uma boa analogia para o uso que Owen faz de Marcial.

[ii] Populo ut placerent, quas fecere fabulas.

[iii] Thomas Moore, Universalidade da Livre Graça.

[iv] Camero, Amirald, etc.

[v] Em benefício de quem?

[vi] “Tronco de figueira, madeira inútil”. A citação é das Sátiras de Horácio. Calvino faz a mesma citação no livro I, capítulo 11 das Institutas. (N. T.)

[vii] Alusão à 1ª estrofe da Eneida de Virgílio. Carlos Alberto Nunes traduz como: “Gratas fainas da terra”, e na nota de rodapé dos editores: “Compensadores trabalhos da terra”. (Virgílio, Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014).

[viii] Pelágio é o monge britânico que se tornou célebre pela controvérsia com Agostinho, na qual defendia, dentre outras coisas, a possibilidade de se viver sem pecado, fazendo-se uso do livre-arbítrio. As ideias de Pelágio foram condenadas no Concílio de Éfeso, em 431. Ao chamá-lo de santo, Owen aponta para o caráter herético da doutrina da redenção universal, que, na sua concepção, nada mais era do que uma cria mascarada do velho pelagianismo. (N.  T.)

[ix] Amor e delícia do gênero humano.

[x] Referência à deusa grega Palas Atena, que, na mitologia grega, foi gerada da cabeça de Zeus. Daí a comparação com o livre-arbítrio, que para Owen é apenas fruto de “mentes obscurecidas”. (N. T.)

[xi] Quando Júlio César atravessou o Rubicão, em 49 a.C., presumivelmente em 10 de janeiro do calendário romano, em perseguição a Pompeu, violou a lei e tornou inevitável o conflito armado. Segundo Suetônio, César teria então proferido a famosa frase Alea jacta est ("a sorte está lançada" ou "os dados estão lançados"). A frase "atravessar o Rubicão" passou a ser usada para referir-se a qualquer pessoa que tome uma decisão arriscada de maneira irrevogável, sem volta. (Wikipedia)

[xii] “eo devenere rata ecclesiae”

[xiii] Virgílio, Eneida. op. cit. I.132: “De tanto orgulho vos incha a confiança na própria linhagem?”

[xiv] Phantasiae inutile pondus.

[xv] Conta-se que o rei da Frígia (Ásia Menor) morreu sem deixar herdeiro e que, ao ser consultado, o Oráculo anunciou que o sucessor chegaria à cidade num carro de bois. A profecia foi cumprida por um camponês, de nome Górdio, que foi coroado. Para não esquecer de seu passado humilde ele colocou a carroça, com a qual ganhou a coroa, no templo de Zeus. E a amarrou com um nó a uma coluna, nó este impossível de desatar e que por isso ficou famoso.
Górdio reinou por muito tempo e quando morreu, seu filho Midas assumiu o trono. Midas expandiu o império, porém, ao falecer não deixou herdeiros. O Oráculo foi ouvido novamente e declarou que quem desatasse o nó de Górdio dominaria toda a Ásia Menor.
Quinhentos anos se passaram sem ninguém conseguir realizar esse feito, até que em 334 a.C Alexandre, o Grande, ouviu essa lenda ao passar pela Frígia. Intrigado com a questão, foi até o templo de Zeus observar o feito de Górdio. Após muito analisar, desembainhou sua espada e cortou o nó. Lenda ou não o fato é que Alexandre se tornou senhor de toda a Ásia Menor poucos anos depois.
É daí também que deriva a expressão "cortar o nó górdio", que significa resolver um problema complexo de maneira simples e eficaz. (Wikipedia)

[xvi] Ὦ τᾶν ποῖόν σε ἔπος φύγεν ἕρκος ὀδόντων;

[xvii] Expressão grega que significa “tentar fazer o impossível”.

[xviii] “Longas vozes, empolados termos”. A citação é da Arte Poética, de Horácio, na tradução de Cândido Lusitano.

[xix] “Palavras jactanciosas de vaidade” (2 Pe 2.3).

[xx] Referência ao célebre general de Davi, que matou à traição tanto Abner quanto Amasa. É ao relato deste último que se refere Owen. (Ver 2 Samuel 20.10).

[xxii] “his gradibus itur in coelum”

[xxiii] “haud ignota loquor”

[xxiv] Eneida, op. cit. VIII.273 et seq. Ibid.

[xxv] Paráfrase de Owen. O original traz:
“March on, brave youths, i’ th’ praise of such free grace,
Surround your locks with bays; and full cups place
In your right hands: drink freely on, then call
O’ th’ common hope, the ransom general.”

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Segunda Recomendação de "A Morte da Morte na Morte de Cristo"


Posts anteriores:

Leitor cristão,
A você apenas essas palavras são direcionadas. Se todos e cada um no mundo, nestes dias do evangelho, efetivamente carregassem este nome precioso de cristão, ou se o nome de Cristo fosse conhecido a todos, então esse direcionamento seria impróprio, pois ele é discriminatório. Mas se Deus distingue entre homens e homens, quer escolhamos ou recusemos, assim é e assim será; há uma distinção - uma distinção que Deus e Cristo fazem de mero beneplácito.
Este livro contende seriamente por essa verdade, contra o erro da redenção universal. Com sua permissão, não posso senão chamá-lo de erro, a menos que tivesse sido, fosse, e, enquanto o mundo continua, deva ser descoberto, de fato, que Adão, e todos que dele procedem por geração ordinária, são primeiramente firmados por Cristo, o segundo Adão, em um estado de redimidos e tornado cristãos, e depois caiam, nações inteiras deles, e percam o direito também a esse estado, e percam sua cristandade; e então ocorra que se tornam ateístas, sem Deus no mundo, e pagãos, judeus e muçulmanos, como vemos que são hoje.
Conheço o autor deste livro apenas pelo nome. É sobre o livro em si que tomo sobre mim a ousadia de escrever estas poucas linhas. Sendo-me entregue para avaliação, eu o li com deleite e utilidade. Com deleite, pela perspicácia de argumento, clareza e completude de respostas e franqueza na linguagem; com utilidade, pela defesa das Escrituras abusadas, pela iluminação de lugares obscuros, e principalmente pela descoberta dos mistérios ocultos de Deus Pai e de Cristo, na gloriosa e graciosa obra da redenção. O mesmo prazer e ganho este tratado promete a todos os seus leitores diligentes, pois a presente controvérsia é tratada de tal modo que a doutrina da fé, na qual devemos crer, é com destreza ensinada. Sim, a glória de cada pessoa na unidade da Deidade, quanto à obra da redenção, é distintamente proclamada com brilhante esplendor, e os erros dos arminianos são golpeados no maxilar, e os seus panfletos são reprimidos com freios e cabrestos.
Quando, na terra, o sangue puder existir sem a água e o Espírito; quando puder testemunhar sozinho, ou puder testemunhar lá onde a água e o Espírito não concordem com o registro; quando, no céu, a Palavra testemunhar sem o Pai e o Espírito Santo; quando o Pai, a Palavra e o Espírito Santo não forem um, não apenas na essência, mas também em querer, trabalhar e testemunhar a redenção de pecadores, então a redenção universal de todo e cada pecador por Cristo será descoberta como uma verdade, mesmo que o Pai não os eleja, nem o Espírito da graça os santifique ou os sele. A glória da livre e seletiva graça de Deus, e a salvação dos eleitos através da redenção que há em Jesus Cristo (que é externa ou não existe em absoluto), são os sinceros desejos e máximos propósitos de todos que são verdadeiramente cristãos. Na busca desses desejos e propósitos, professo que eu mesmo existo para servir a você.
Seu em Jesus Cristo,
Richard Byfield[i]




[i] Richard Byfield foi expulso de Long Ditton, no condado de Surrey, pelo Ato de Uniformidade. Além de alguns sermões e tratados, foi o autor de um volume: “A Doutrina do Sabbath Defendida”. Sofreu a suspensão e o confisco por quatro anos por se recusar a ler o Book of Sports. Foi membro da Assembleia de Westminster. Durante o tempo de Cromwell, surgiu um desentendimento entre ele e o patrono da paróquia, Sir John Evelyn, sobre os reparos da igreja. Cromwell os reuniu, foi bem-sucedido em reconciliá-los, e, para firmar a reconciliação, generosamente adiantou 100 libras, metade da soma necessária para os reparos. Byfield não conhecia Owen, nem mesmo pelo nome, quando deu a recomendação a esta obra. Era, então, de alguma importância para Owen que tivesse a sanção de Byfield, e o favor é recompensado quando este último deve sua própria reputação com a posteridade pela homenagem que prestou ao jovem e ascendente teólogo da sua época. (N. E.)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Primeira Recomendação de "A Morte da Morte na Morte de Cristo"



Leitor,
Há dois pilares podres sobre os quais a fábrica do recente arminianismo (uma cria do antigo pelagianismo, que tínhamos bem esperado que há muito houvesse esfriado, mas que é aquecido e chocado pela sagacidade devassa de nossos espíritos degenerados e apóstatas) principalmente repousa.
Um é que Deus ama a todos indistintamente, Caim e Abel, Judas e o resto dos apóstolos.
O outro é que Deus dá (ou melhor, é obrigado ex debito[i] a assim fazer) tanto Cristo, a grande dádiva de seu eterno amor, a todos indistintamente, para trabalhar pela redenção deles, quanto poder para crer (vires credendi) em Cristo a todos indistintamente a quem oferece o evangelho; de modo que essa redenção pode eficazmente ser aplicada para a salvação deles, se lhes agradar fazer uso correto daquilo que é assim posto em seu poder.
O primeiro [pilar] destrói a livre e especial graça de Deus, tornando-a universal. O último dá razão para o homem gloriar-se em si mesmo ao invés de em Deus, este não concorrendo mais para a salvação de um crente do que concorre para a de um réprobo. Cristo morreu por ambos igualmente; Deus dá poder de aceitar Cristo a ambos igualmente. Os próprios homens determinam a questão pelo seu livre-arbítrio; Cristo torna ambos igualmente “salváveis”, mas eles próprios são a causa de sua salvação.
Essa doutrina maldita contradiz o propósito principal da sagrada Escritura, que é humilhar e demolir o orgulho do homem, fazê-lo até desesperar-se de si mesmo e promover e estabelecer a glória da livre graça de Deus, do princípio ao fim da salvação do homem.
O reverendo e erudito autor deste livro recebeu força de Deus (como um Sansão) para demolir esta casa podre sobre as cabeças desses filisteus que a sustentam. Leia-o diligentemente e não tenho dúvida que dirá comigo que há tal variedade de matéria selecionada correndo por todas as veias de cada discurso aqui manejado, e conduzida com tamanha força de julgamento são e profundo, e com tal vida e poder de um espírito celeste, e tudo expresso com palavras vigorosas e grávidas de sabedoria, que você tanto se deleitará na leitura quanto louvará a Deus pelo escritor. É a minha oração sincera que tanto ele quanto sua obra sejam mais e mais úteis.
O mais indigno dos ministros do evangelho,
Stanley Gower[ii]


[i] De obrigação, ou por obrigação.
[ii] Teólogo puritano de eminência considerável e membro da Assembleia de Westminster. Ele foi, a princípio, ministro em Brampton Bryan, Herefordshire. Mais tarde, foi ministro em Dorchester, onde parece ter permanecido em vida até 1660. (N. E.)

domingo, 8 de novembro de 2015

Nota Preliminar à Morte da Morte na Morte de Cristo


NOTA PRELIMINAR

Nos testemunhos dos pais antigos, que Owen apensou ao tratado seguinte, ele cita Agostinho e Próspero como autoridades em apoio a sua opinião de uma expiação definida e eficaz. Embora esses pais, em oposição aos pelagianos e semipelagianos de seus dias, sustentassem essa visão, o ponto não emergiu em uma proeminência imperiosa na controvérsia com a qual seus nomes são principal e honradamente associados. Não foi de modo algum um assunto de especial controvérsia, ou a chave de sua posição no campo no qual esses Pais ganharam o reconhecimento. Foi, porém, na disputa que prevaleceu entre Incmaro[1] e Godescalco[2], exatamente quatro séculos depois que a discussão sobre a extensão da expiação assumiu uma forma distinta e positiva. As decisões dos diferentes concílios que se reuniram para julgar os princípios conflitantes será achada no apêndice deste tratado.
A mesma controvérsia foi renovada na Holanda entre os gomaristas e os arminianos, quando o Sínodo de Dort, em um de seus artigos, condenou a doutrina remonstrante de uma expiação universal. Cameron, o esmerado professor de teologia em Saumur, originou a última discussão importante sobre o assunto, antes que Owen escrevesse seu tratado a respeito. As opiniões de Cameron foram adotadas e defendidas com grande habilidade por dois de seus estudiosos, Amyraud e Testard; e no ano de 1634 surgiu a controvérsia que agitou a igreja francesa por muitos anos. Amyraud tinha o apoio de Daillé e Blondell e foi habilmente oposto por Rivet, Spanheim e Des Marets.
Nas últimas duas instâncias em que a discussão sobre a extensão da expiação reviveu nas igrejas reformadas, houve uma distinção essencial, muito comumente subestimada, entre os pontos especiais aos quais as controvérsias respectivamente diziam respeito. O objetivo do artigo sobre a morte de Cristo, emitido pelo Sínodo de Dort, era neutralizar a doutrina de que Cristo, pela expiação, apenas adquiriu para o Pai um direito e liberdade plenários de instituir um novo procedimento com todos os homens, pelo qual, na condição de que fossem obedientes, poderiam ser salvos. Os teólogos de Saumur não teriam aceitado essa doutrina como uma representação correta de seus sentimentos. Admitindo que, pelo propósito de Deus, e através da morte de Cristo, os eleitos são infalivelmente assegurados no aproveitamento da salvação, eles contendiam por um decreto antecedente, pelo qual Deus é livre para dar a salvação a todos os homens por meio de Cristo, na condição de que cressem nele. Daí que seu sistema fosse denominado universalismo hipotético. A diferença vital entre essa teoria e a arminiana estrita subjaz na segurança absoluta afirmada naquela primeira para a recuperação espiritual dos eleitos. Concordam, entretanto, em atribuir algum tipo de universalidade à expiação e em sustentar que, em uma certa condição, dentro do alcance do cumprimento por todos os homens, - obediência geralmente, de acordo com os arminianos, e fé, de acordo com os teólogos de Saumur – todos os homens têm acesso aos benefícios da morte de Cristo.
Para transmitir consistência à teoria de Amyraud, a fé deve, em algum senso, ser apropriada para todos os homens; e ele sustentou, por conseguinte, a doutrina da graça universal, em cujo aspecto sua teoria difere essencialmente da doutrina da expiação universal, como abraçada por eminentes teólogos calvinistas, que sustentavam a necessidade da operação especial da graça, a fim de exercitar a fé. Os leitores de Owen entenderão, a partir dessa explicação apressada, por que ele lida com peculiar agudeza e reiteração de declaração sobre uma refutação do sistema condicional, ou o sistema da graça universal, de acordo com o nome que adquiriu em discussões posteriores. Este era plausível; tinha muitos eruditos entre seus defensores; tinha obtido circulação nas igrejas estrangeiras; e parecia ter sido abraçada por More, ou Moore, cuja obra sobre “A Universalidade da Livre Graça de Deus”, Owen replica em grande extensão.
Thomas Moore é descrito por Edwards, em seu “Gangraena”, parte II, p. 86, como “um grande sectário, que causou muito dano em Lincolnshire, Norfolk e Cambridgeshire; que era famoso também em Boston, Lynn e até mesmo na Holanda, e era seguido de lugar em lugar por muitos”. Sua obra, em um volume in-quarto, foi publicada em 1643, e no mesmo ano apareceu uma réplica de autoria de Thomas Whitefield, “Ministro do Evangelho em Great Yarmouth”. O Sr. Orme nota que “ele tem cuidado de nos informar em um título de página que ‘Thomas Moore era outrora um tecelão em Wills, próximo de Wisbitch.’” E acrescenta que, em relação à produção de Moore, “sem aprovar o argumento da obra, não hesito em dizer que é honrosa aos talentos do tecelão, e não desonrosa à sua piedade”. O tecelão, deve ser adicionado, foi o autor de algumas outras obras: “Descoberta dos Sedutores que Lisonjeiam pelas Casas”, “Sobre o Batismo”, “Um Discurso sobre o Sangue e Sacrifício Preciosos de Cristo”, etc.
Em 1650, o Sr. Horne, ministro em Lynn, em Norfolk, um homem, segundo Palmer (Nonconf. Mem., iii, pp. 6, 7), “de exemplar e simples piedade” e autor de diversos livros, publicou uma réplica à obra de Owen, intitulada “A Porta Aberta para a Aproximação do Homem a Deus; ou uma vindicação do registro de Deus relativo à extensão da morte de Cristo, em resposta ao tratado sobre o assunto do Sr. John Owen.” Horne tinha uma reputação considerável por sua habilidade com língua orientais e “algumas de suas observações e interpretações da Escritura” que, no julgamento de Orme, “não eram indignas da atenção de Owen”. Este, porém, em sua epístola prefixada à obra “Vindiciae Evangelicae”, expressou sua opinião de que a obra de Horne não merecia uma réplica.
Dois anos após A Morte da Morte ter sido publicada, seu autor teve que defender alguns dos pontos que havia mantido nela contra um adversário mais formidável e celebrado. Richard Baxter, em um apêndice a seu “Aforismos sobre a Justificação”, apresentou algumas discordâncias das opiniões de Owen sobre a redenção. Owen lhe respondeu em um tratado que pode ser encarado como um apêndice a seu “Morte da Morte”. Nas discussões entre eles, muito das sutilezas escolásticas aparece em ambos os lados que é provável que se sinta pouco interesse nesse departamento da questão geral sobre a qual discordavam.
Pode ser necessário declarar precisamente que opinião Owen realmente sustentava com relação à extensão da expiação. Todas as opiniões sobre esse ponto, em termos gerais, podem ser reduzidas a quatro. Há alguns que sustentam que Cristo morreu para que, no fim das contas, assegurasse a salvação de todos os homens. Há outros que mantêm a opinião condenada pelo Sínodo de Dort, que pela morte de Cristo Deus é capacitado a salvar todos ou qualquer um, na condição de que obedeçam. Há um terceiro partido que, à medida em que creem que Cristo morreu com o fim de infalivelmente assegurar a salvação dos eleitos, sustentam que, visto que Cristo, em sua obediência e sofrimentos, fez o que todos os homens estavam na obrigação de fazer, e sofreu o que os homens mereciam sofrer, sua expiação tem um aspecto e referência gerais bem como especiais, em virtude do que a oferta do evangelho pode ser livremente ofertada a eles. Finalmente, há aqueles, entre eles Owen, que advogam uma expiação limitada ou definida, expiação tal que implica uma conexão necessária entre a morte de Cristo e a salvação daqueles por quem morreu, ao passo que o real procedimento da expiação quanto aos perdidos é deixado entre as coisas não reveladas, salvo apenas que sua culpa e punição são aumentadas pela rejeição daquela misericórdia oferecida no evangelho.
Hagenbach, em sua “História das Doutrinas”, vol. 2, p. 255, estranhamente afirma que “com relação à extensão da expiação, todas as denominações, com exceção dos calvinistas, sustentam que a salvação foi oferecida a todos”. Seria difícil especificar qualquer calvinista digno desse nome que sustentasse que a salvação não deveria ser oferecida a todos; e parece ser necessário declarar que Owen pelo menos, o mais calvinista dos calvinistas, não sustentava essa opinião. Ao contrário, entre os calvinistas que aderem à doutrina da expiação limitada, tem sido matéria de debate não se o evangelho deve ser ofertado universalmente, mas em que base - a simples ordem e garantia da Palavra ou a suficiência intrínseca e infinita da expiação - a oferta universal do evangelho procede. Talvez esse ponto nunca esteve formalmente ante a mente de nosso autor, mas ele intima que a “suficiência inata da morte de Cristo é o fundamento de sua oferta indistinta aos eleitos e  réprobos”.
Entre as edições valiosas dessa obra, aquela impressa em Edimburgo, em 1755, sob a superintendência do Rev. Adam Gib, merece menção honrosa. Foi impressa com algum cuidado; considerável atenção é dispensada à numeração; e uma análise valiosa da obra inteira é a ela prefixada. Não nos sentimos na liberdade de adotar a numeração em todos os aspectos, vez que se usa de mais liberdade com o original do que seria consistente com os princípios dessa edição das obras de Owen. Reconhecemos nossas obrigações a ela na preparação da análise, que é em sua maior parte tomada dela.






[1] Incmaro de Reims (Em latimHincmarus Rhemensis; em francêsHincmar); (806 a 882). Foi arcebispo de Reims, amigo, conselheiro e propagandista de Carlos, o Calvo, e uma das mais importantes figuras da história da Igreja durante o período carolíngio.
[2] Godescalco de Orbais (em latimGotteschalcus Orbacensis; em francêsGodescalc; em alemãoGottschalk; (808867) foi um teólogomonge e poeta saxão que é mais conhecido por ter sido um dos primeiros advogados da doutrina da dupla predestinação

sábado, 7 de novembro de 2015

A EXISTÊNCIA E ATRIBUTOS DE DEUS


DISCURSO 1

SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS

Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem. (Salmo 14:1)

Este salmo é uma descrição da deplorável corrupção por natureza de todo filho de Adão, desde a secagem daquela raiz comum. Alguns o restringem aos gentios, como um deserto cheio de espinheiros e cardos, e não aos judeus, o jardim de Deus, plantado por sua graça e regado pelo orvalho do céu. Porém o apóstolo, o melhor intérprete, corrige isso ao estendê-lo nominalmente aos judeus tanto quanto aos gentios: “Pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado” (Rm 3:9). Nos versículos 10, 11 e 12, ele cita parte deste salmo e de outras passagens da Escritura, para dar evidência adicional, concluindo que tanto judeus quanto gentios, cada pessoa no mundo, se encontra naturalmente nesse estado de corrupção.
O salmista primeiramente declara a corrupção das faculdades da alma: “Diz o insensato no seu coração”. Depois, o curso que daí brota: “Corrompem-se...”. O primeiro, em princípios ateístas, o outro, em práticas vis. E expõe toda a maldade, tirania, luxúria e perseguições dos homens, (como se o mundo existisse por causa deles) no seu desprezo de Deus, e o ateísmo acalentado em seus corações.
O insensato, termo que, na Escritura, designa o ímpio, também usado pelos filósofos pagãos para nomear uma pessoa viciosa, lbg vindo da palavra lbn significa extinção da vida nos homens, animais e plantas. Desse modo se usa a palavra para designar uma planta que perdeu toda a formosura que a fazia amável e útil. Assim, um insensato é alguém que perdeu sua sabedoria e reta noção de Deus e das coisas divinas, comunicadas a ele pela criação; é alguém morto no pecado, contudo, nem tanto vazio das faculdades racionais, como está da graça nessas faculdades. Não é alguém faltoso de razão, mas que dela abusa. Na Escritura, o termo designa o tolo.
Diz no seu coração. Ou seja, ele pensa, ou duvida, ou deseja. Para Deus, os pensamentos do coração são na forma de palavras, ainda que não para os homens. Também é usado, no caso similar ateu: “Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu”; “Diz no seu íntimo que Deus não se importa” (Sl 10:11, 13). Ele não forma um silogismo, como assevera Calvino, de que não há um Deus; não ousa publicamente o proclamar, ainda que secretamente ouse pensá-lo. Não consegue arrasar os pensamentos da deidade, ainda que se esforce para riscar os caracteres de Deus em sua alma. Tem algumas dúvidas quanto à existência ou não de Deus; deseja que não tivesse nenhuma, e às vezes espera não ter nenhuma em absoluto. Não conseguiria assegurar-se, por meio de argumentos convincentes; porém adulterou com seu próprio coração para trazê-lo a essa convicção e sufocou em si mesmo aqueles vislumbres de uma deidade. Isto é tão claramente contrário à luz da natureza que tal homem pode bem ser chamado de tolo.
Não há Deus. Anjlwv tyl, non potestas Domini. Não é Jeová, que denomina a essência de Deus como o ser primeiro e supremo [que é negado], mas Elohim, nome que designa a providência de Deus, como um governador e juiz. Não que negue a existência de um ser supremo que criou o mundo, mas sim, no que diz respeito às suas criaturas, nega seu governo do mundo, e, por conseguinte, que ele recompense os justos e puna os ímpios.
Há uma tripla negação de Deus. 1. Quoad existentiam, este é o ateísmo absoluto. 2. Quoad providentiam, ou sua inspeção, ou cuidado das coisas do mundo, limitando-o ao céu. 3. Quoad naturam, em relação a uma ou outra das perfeições devidas à sua natureza.
Da negação da providência de Deus, muitos entendem que não se excluam os ateus absolutos, como se pensa ter sido Diágoras, nem os ateus céticos, como Protágoras, que duvidava que houvesse um Deus. Os que negam a providência de Deus, negam, com efeito, a sua existência, pois o privam da sabedoria, bondade, benevolência, misericórdia, justiça e retidão que são a glória da Deidade. E esse princípio de um ávido desejo de não ser controlado em suas luxúrias, o qual induz os homens a negarem a providência, para que, por esse modo, possam sufocar aquelas sementes do temor que infectam e envenenam seus prazeres pecaminosos, podem também levá-los a negar que haja um ser semelhante a Deus. Isso para que, de uma só vez, seus temores sejam todos reduzidos em pedaços e dissolvidos pela remoção do fundamento; são semelhantes a homens que, desejando a liberdade para cometer as obras das trevas, não se contentariam em enfraquecer as luzes da casa, mas as apagariam. O que os homens dizem contra a providência, porque não querem vigilância sobre suas luxúrias, podem dizer nos corações contra a existência de Deus, pelo mesmo motivo. Há pouca diferença entre divergir de uma e rejeitar a outra.
Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem.
Ele fala do ateu no singular, o insensato; porém, da corrupção brotando na vida, fala no plural*, sugerindo que, conquanto alguns poucos possam asfixiar no coração os sentimentos de Deus e de sua providência, e positivamente os negar, contudo, há um secreto ateísmo em todos, que é a fonte das más obras em suas vidas. Não é uma completa negação da existência de Deus, mas uma negativa ou dúvida de alguns dos atributos de sua natureza. Quando os homens negam o Deus da pureza, precisam estar poluídos na alma e no corpo e se tornarão embrutecidos em suas ações. Quando o senso da religião é abalado, todos os tipos de impiedade rapidamente irrompem, pelos quais se tornam tão asquerosos a Deus quanto as carcaças putrefatas são aos homens. Não uma ou duas más ações são produtos desses princípios, mas a completa cena da vida de um homem é corrompida e se torna execrável.
Homem algum está livre de algum odor de ateísmo pela depravação de sua natureza, a que alude o salmista: “Não há ninguém que faça o bem”. Ainda que haja indeléveis convicções do ser de Deus, que não se podem absolutamente negar, contudo há algumas bolhas ateísticas nos corações dos homens, a que dão evidência pela prática. Como diz o apóstolo: “Professam que conhecem a Deus, mas o negam por suas obras” (Tt 1:16). As más obras são poeira levantadas pela respiração ateísta. Dificilmente pode-se dizer que aquele que se habituou a alguma luxuria sórdida pode séria e firmemente crer que haja um Deus; e o apóstolo não diz que conhecem a Deus, mas que “professam conhecê-lo”. O verdadeiro conhecimento e a profissão do conhecimento são distintos. Também nos sugere os excessos do ateísmo nas suas consequências. Quando os homens fecham seus olhos para os raios de sol tão claro, Deus se vinga neles por sua impiedade ao entregá-los às suas vontades, deixando-os cair na mais profunda sarjeta e escória da iniquidade. E, uma vez que duvidam dele nos corações, permite-lhes, mais que aos outros, que o neguem por suas obras. Isso o apóstolo discute com mais amplitude em Romanos 1.24.
O texto, então, é uma descrição da corrupção humana.
1. De sua mente. Diz o insensato em seu coração. Nenhum título mais apropriado do que insensato é concedido ao ateísta.
2. Das outras faculdades, 1. Nos pecados de comissão, expressos pela repulsa: (corrompem-se, abominação); 2. Em pecados de omissão, (Já não há quem faça o bem). Ele apresenta a corrupção da mente como causa, a corrupção das outras faculdades como efeito.
I. É uma grande tolice negar ou duvidar da existência ou ser de Deus, ou seja, o ateu é um grande tolo.
II. O ateísmo prático é natural ao homem em seu estado corrompido. É contrário à natureza como constituída por Deus, mas natural para a natureza depravada do homem.
III. Um secreto ateísmo, ou ateísmo parcial, é a fonte de todas as práticas ímpias no mundo. As desordens da vida brotam das más disposições do coração.
I. Primeiramente, todo ateu é um grande tolo. Se não fosse, não imaginaria algo tão contrário ao fluxo da razão universal no mundo, tão contrário aos ditames de sua própria alma e aos testemunhos de cada criatura e elo na cadeia da criação. Se não fosse um tolo, não se despiria da humanidade e se degradaria abaixo do mais desprezível dos brutos. É tolice, pois ainda que Deus seja tão inacessível que não possamos conhecê-lo perfeitamente, contudo está de tal modo na luz, que não podemos ser totalmente ignorantes dele. Assim como não pode ser compreendido em sua essência, não pode ser desconhecido em sua existência. É tão fácil para a razão reconhecer que ele existe, como é difícil saber quem ele é.
A demonstração que a razão nos fornece da existência de Deus dará evidências da tolice ateísta. Alguém poderia pensar que há pouca necessidade de provar essa verdade, uma vez que, em seu princípio, parece ser tão universalmente aceita, e, à primeira proposta e demanda, já ganha o assentimento da maioria dos homens. Mas,
1. O crescimento do ateísmo entre nós não torna essa tarefa necessária? Não pode com justiça se suspeitar que as nuvens do ateísmo são mais numerosas em nossos tempos do que a história registra ter sido em qualquer outra época? Hoje os homens não dizem somente em seus corações, mas proclamam com seus lábios, e se gabam que tenham sacudido as cadeias que prendem as consciências dos outros homens. Acaso a indulgência audaciosa dos homens não evidencia sentimento tão firmado, ou ao menos uma descuidada crença da verdade, que subjaz na raiz e germina em ramos tão venenosos no mundo? Podem os corações dos homens se ver livres desse princípio que torna suas práticas tão abertamente depravadas?
É verdade que a luz da natureza brilha vigorosamente demais para que a força humana possa apagá-la por completo, contudo ações repulsivas arruínam e enfraquecem os pensamentos e considerações verdadeiras sobre uma deidade, e são como neblina que escurece a luz do sol, ainda que não a extinga; suas consciências, como um castiçal, devem segurá-la, ainda que sua injustiça a obscureça: “Eles detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). Os caracteres esculpidos da lei da natureza permanecem, ainda que eles os manchem com suas luxúrias lamacentas para torná-los ilegíveis, de tal modo que a desconsideração da deidade é a causa de toda impiedade e extravagâncias dos homens. E, como diz Agostinho, é sempre verdadeira a proposição: “Disse o tolo em seu coração”, e, mais do que nunca, é evidentemente verdadeira em nossa era. Não será necessário discursar acerca da demonstração deste primeiro princípio.
Os apóstolos gastaram pouco tempo insistindo nessa verdade, pois era ponto pacífico para todo o mundo, o qual era geralmente devoto no culto daqueles ídolos que pensava serem deuses. Aquela época corria de um Deus para muitos; a nossa corre de um Deus para absolutamente nenhum.
2. A existência de Deus é o fundamento de toda religião. Todo o edifício cambaleia se a fundação sair do rumo; se não tivermos noções deliberadas e certas dele, não realizaremos culto algum, nenhum serviço, não teremos afeição alguma por ele. Se não houver um Deus, é impossível que haja qualquer divindade, pois a eternidade é essencial à noção de Deus. Portanto, toda religião seria vã e irracional, por reverenciar aquilo que não existe nem jamais pode existir. Devemos primeiro crer que ele existe, e que é o que declara ser, antes que possamos buscá-lo, adorá-lo, e devotar-lhe nossas afeições (Hb 11.6). Não podemos prestar uma devida e regular reverência a Deus a menos que o compreendamos em suas perfeiçoes, o que ele é; e não podemos prestar-lhe reverência alguma, a menos que creiamos que ele é.
3. É adequado que saibamos por que cremos, e que a nossa fé em Deus possa parecer firmar-se em evidência irrefutável, e para que possamos dar melhor razão de sua existência do que aquelas que ouvimos de nossos pais e mestres, e daquelas imaginadas por nossos conhecidos. É quase dizer que não há Deus quando não sabemos por que cremos que haja um e não consideramos os argumentos a favor de sua existência.
4. É necessário abater esse secreto ateísmo que está no coração de todo homem por natureza. Ainda que cada objeto visível que se oferece aos nossos sentidos apresente a deidade às nossas mentes e nos exorte a subscrever à sua verdade, contudo há uma raiz de ateísmo brotando, às vezes, em pensamentos hesitantes e imaginações tolas, ações desordenadas e desejos secretos. Certo é que todo homem que não ama a Deus o nega. Ora, seria possível que aquele que lhe é desafeiçoado e tem dele vil temor, [ao mesmo tempo] deseje sua existência, e diga a seu próprio coração com prazer: “Há um Deus”, e transforme essa persuasão em seu cuidado principal? Ele persuadiria a si mesmo de que não há Deus, e sufocaria a semente dele na sua razão e consciência para que pudesse ter maior liberdade para entreter os afagos da carne.
É necessário animar os homens a considerações diárias e verdadeiras sobre Deus e sua natureza, o que seria um empecilho para a maior parte dessa impiedade que transborda nas vidas dos homens.

5. Nem é desvantajoso para aqueles que efetivamente creem nele e o amam*; pois os que se familiarizaram com Deus e sentiram suas influências poderosas no íntimo dos corações, para que explorem os relatos satisfatórios que a razão fornece acerca desse Deus a quem adoram e amam, para que vejam toda criatura justificá-los no reconhecimento deles de Deus, e nas afeições por ele. De fato, as evidências de um Deus golpeando as consciências daqueles que resolvem se apegar ao pecado como seu prazer principal arrojará estes prazeres com misturas indesejadas.